sábado, 2 de março de 2013

Matéria: Além do peregrino da Alvorada


Todos sabem que a série As Crônicas de Nárnia é famosa no mundo todo, já tendo inclusive três adaptações para o cinema, além de especiais feitos para a televisão e peças de teatro distribuídas ao redor do globo. O que a maioria ainda não sabe é que as histórias de Lewis, de acordo com alguns especialistas, trás em seu âmago questões polêmicas e curiosas, como sua relação com o cristianismo e o sexismo, por exemplo. Esta matéria tem como base um dos livros das Crônicas, A Viagem do Peregrino da Alvorada, e procura exemplificar algumas das questões.

Atenção: O texto pode conter spoilers para quem ainda não leu o livro.

“A Viagem do Peregrino da Alvorada” é o terceiro livro pertencente à série “As Crônicas de Nárnia”, escrito por Clive Staples Lewis (mais conhecido como C. S. Lewis) e foi publicado originalmente no ano de 1952. A edição do livro utilizada para a construção desta resenha foi uma edição brasileira publicada no ano de 2002 no Volume Único contendo as sete obras que completam a série.

A história trata de uma fantasia histórica e mitológica voltada para o público infantil, narrando os acontecimentos da terceira viagem dos irmãos Pevensie ao país de Nárnia. “Nárnia” é um mundo criado pelo autor para servir de cenário às histórias narradas nas sete obras da série, e recebe este nome em homenagem ao país de Nárnia, local onde acontecem a maior parte das histórias. Nesse mundo, muitos animais podem falar, a presença de seres mitológicos é abundante e a magia é comum aos habitantes. A história deste livro é narrada muitos anos após a chamada Era de Ouro de Nárnia, Era esta que é marcada pelo reinado dos Quatro Reis de Nárnia, sendo estes os irmãos Pevensie em sua primeira viagem ao mundo – história narrada no primeiro livro da série em que os irmãos são protagonistas.

O livro de 117 páginas (na edição Volume Único) é dividido em dezesseis capítulos onde o narrador observador conta a história sob sua própria perspectiva, por vezes realizando comentários pertencentes ao próprio autor da obra, e ainda fazendo referências às outras histórias da série.

(clique no link abaixo para ler a matéria completa)
Como já foi dito, a história narra os acontecimentos da terceira viagem dos irmãos Pevensie (Lucy e Edmundo) ao mundo de Nárnia, acompanhados pelo primo Eustáquio. Diferente dos dois livros anteriores a este, os dois irmãos mais velhos de Lucy e Edmundo (Susana e Pedro) não voltam à Nárnia por – palavras do autor – já serem “grandes” para tal. Nesta história, os três personagens pertencentes ao nosso mundo viajam para Nárnia através da magia (descrita como único meio de transporte para Nárnia) de um quadro pendurado no quarto em que Lucy está hospedada na casa do primo Eustáquio.

Já em Nárnia, a bordo do navio Peregrino da Alvorada, os três se encontram com o velho amigo Caspian X, Rei de Nárnia, que foi o personagem principal do livro anterior da série (“O Príncipe Caspian”). Os irmãos, na companhia do primo Eustáquio, do Rei e da tripulação do Peregrino, saem em busca dos sete fidalgos: sete amigos do pai de Caspian que foram expulsos do país de Nárnia quando o Rei Miraz (tio de Caspian) reinava em tirania. Partem rumo aos extremos do oriente, terras nunca antes navegadas por ninguém, passando por muitas ilhas de Nárnia e encontrando diversos obstáculos, maravilhas e problemas a serem resolvidos, enquanto resgatam e descobrem onde se encontram cada um dos sete fidalgos amigos de seu pai.

Em determinado ponto da história, o navio chega à Ilha de Ramandu, onde se encontram os últimos três fidalgos, adormecidos eternamente devido a um feitiço preso no cabo de uma Faca de Pedra (usada para matar o leão Aslam, personagem soberano dos livros, no primeiro livro da série). Ramandu, o ancião da ilha, diz que para quebrar o feitiço dos três últimos fidalgos é preciso “navegar até o Fim do Mundo, ou o mais próximo possível dele, e regressar depois deixando lá pelo menos um de vocês” (Ramandu, p. 497 do Volume Único). Sendo assim, o navio parte rumo ao extremo oriente, visando alcançar o Fim do Mundo, ponto onde a história se encerra.

Nos domínios do Fim do Mundo, onde uma “enorme onda caindo sem cessar” (p. 512) os separa do País de Aslam, os irmãos Pevensie, o primo Eustáquio e um rato falante chamado Ripchip se encontram com um Cordeiro na base de onde o Céu se encontra com a Terra. O Cordeiro rapidamente revela ser na verdade Aslam, o leão soberano criador de Nárnia. Aslam então envia os irmãos e o primo de volta para o mundo o qual pertencem, enquanto recebe o rato Ripchip em seu País. Dessa forma, os fidalgos adormecidos na Ilha de Ramandu acordam e retornam ao país de Nárnia, junto com o Rei, que acaba se casando com a filha do ancião, pondo assim um ponto final na história do livro.

A história do livro “A Viagem do Peregrino da Alvorada”, assim como as outras histórias da série, fazem várias referências a muitos temas do Cristianismo, apresentados de forma metafórica e camuflada em seus personagens e locais. Podemos ver que a história do livro em questão, apesar de trazer menos referências cristãs que os outros livros da série, nos leva a refletir sobre algumas questões.

Em determinado ponto da história, os personagens descobrem uma ilha, que acabam por nomeá-la de Ilha do Dragão, onde o personagem de Eustáquio, que entrou para a viagem contra a sua vontade, tem seu forte temperamento e seu caráter alterados devido a um feitiço que o aprisiona dentro do corpo de um dragão. Na agonia e no desespero de estar transformado em uma figura primitiva que não é a sua, passa a refletir sobre suas ações e seu relacionamento com os outros personagens, arrependendo-se do mau comportamento que teve desde que chegou à Nárnia. Quando já não agüenta de agonia, Eustáquio pede por ajuda e para ele aparece Aslam, que pede para que Eustáquio deixe a pele de dragão para trás e dê espaço para uma nova vida. Essa passagem faz referência ao batismo cristão, onde é selada a transformação de Eustáquio através de um ato cerimonial que representa o nascimento de uma nova criatura, livre do pecado.

Existem vários autores cristãos que dizem que o leão Aslam, presente em todas as histórias da série como um ser supremo e misterioso, faz alegoria a Jesus, pois seus atos durante os decorrer da história dos personagens assemelham-se aos de Cristo. Na história, Aslam é descrito como o filho do Imperador Além-Mar (personagem nunca visto), que pode ser tomado como Deus, fato que reforça ainda mais a “personificação” de Jesus em Aslam. O autor descreve como coincidência o fato de Jesus ser chamado de O Leão de Judá na Bíblia, mas há quem diga que tal ato é proposital, devido à história de vida do autor da série.

Quando os irmãos e o primo se encontram com Aslam no ponto onde a terra une-se ao céu, ele, que aparece em forma de Cordeiro (forma bíblica de referir-se a Jesus) diz às crianças o seguinte: “Em todos os mundos há um caminho para meu País”. Atrás da onda que delimita o Fim do Mundo, se encontra o País de Aslam, para onde vai o personagem Ripchip ao fim da história. Tal País pode ser comparado ao paraíso cristão, para onde todos vão depois que deixam este mundo. Além disso, Aslam ainda diz que no mundo dos garotos ele é conhecido por outro nome, e que eles devem aprender a conhecê-lo por este nome, e encontrar o caminho para o País de Aslam a partir de seu próprio mundo.

Outro paralelo que pode ser estabelecido com o cristianismo é o fato de os irmãos Pevensie não poderem retornar à Nárnia após estarem mais velhos. Como já havia dito, os irmãos mais velhos, Susana e Pedro, não haviam retornado para as aventuras narradas no terceiro livro, da mesma forma que Lucy e Edmundo não retornam para o próximo livro da série, denominado “A Cadeira de Prata”. (O primo Eustáquio, por ser o menor, é o único que retorna à Nárnia no livro seguinte, acompanhado de sua amiga Jill). Tal idéia pode se dar através do estabelecimento do pecado nos jovens, fenômeno que é referido também em história de autores contemporâneos ao autor da série Nárnia, como o autor Phillip Pullman e sua série intitulada “Fronteiras do Universo”, onde as crianças, depois de afetadas pelo chamado “Pó” (pecado), deixam de serem puras e inocentes.

Há autores de outros livros do mesmo gênero, como J. K. Rowling, autora dos livros da série “Harry Potter”, que discordam de C. S. Lewis neste ponto. A autora diz que não concorda com Lewis quando este diz que Susana, a irmã mais velha de Lucy e Edmundo, se esqueceu de Nárnia por causa de “batons, náilons e convites”. Ela diz:

Chega um ponto em que Susana, que era a garota mais velha, está esquecendo Nárnia porque ela fica interessada em batom. Ela tornou-se irreligiosa basicamente porque encontrou sua sexualidade. Tenho um grande problema com esta questão de Susana
J. K. Rowling

Outro autor que discorda de Lewis nesse ponto é o já descrito Phillip Pullman, que se torna bastante crítico aos livros de Lewis por conta desta suposta desvalorização da feminilidade, ou “sexismo”. Ele diz:

Susana, assim como uma “Cinderela”, está prestes a sofrer uma mudança de fase de sua vida para outra. Não aprovo isso de Lewis. Ele não gosta de mulheres ou sexualidade em geral, pelo menos enquanto escrevia os livros. Lewis estava assustado e horrorizado com a idéia do crescimento.
Phillip Pullman

O livro é basicamente direcionado a crianças de todas as idades, publico alvo de C. S. Lewis com as histórias da série, mas pode servir de leitura para qualquer pessoa que se permita sair de sua rotina por alguns momentos e desfrutar de uma fantasia diferente e bem construída, não dando necessariamente atenção às referências cristãs. Há quem diga que os livros podem ser utilizados para passar o conhecimento do Cristianismo para crianças em escolas, mas este não era o propósito do autor ao escrever a série, pelas referências serem em sua maioria sutis e não tendo real influência sobre o curso da narrativa. A história, assim como outras inúmeras fantasias, visa transportar o leitor para um local diferente, contar uma história diferente e criativa, tornando-se assim aberta a todas as idades e a quem interessar.

O autor Clive Staples Lewis, conhecido mundialmente como C. S. Lewis, nasceu em Belfast, na Irlanda, em 1898. Ele e seu amigo J. R. R. Tolkien, autor da trilogia “O Senhor dos Anéis”, faziam parte dos Inklings, um grupo de escritores, associado à Universidade de Oxford, na Inglaterra, que se reuniam em um pub local para discutir idéias para as histórias. Foi seu amigo Tolkien o responsável por converter Lewis ao Cristianismo. C. S. Lewis escreveu muitos trabalhos acadêmicos sobre a literatura medieval e a apologética cristã, se tornando famoso por influenciar muitas personalidades do nosso tempo. Um de seus artigos acadêmicos foi publicado no Brasil juntamente com o Volume Único da série Nárnia e se chama “Três maneiras de escrever para crianças”, onde faz referência às idéias de C. G. Jung, criador da Psicologia Analítica e também às de seu amigo Tolkien.

Matéria escrita por Jeff pavanin

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