domingo, 17 de março de 2013

[Resenha] Salto Mortal

Autor: Marion Zimmer Bradley
Editora: Bertrand Brasil
Páginas: 896

Uma das primeiras lembranças que tenho de quando conheci minha melhor amiga é o imperativo: "Leia Salto Mortal, da Marion". 

Isso me perseguiu por anos, e sempre tive dificuldade em encontrá-lo - procurando exclusivamente em livrarias, ou lojas online, que quando o tinham disponível ou era por um preço absurdo, ou estava esgotado. No fim, encontrei-o em um sebo online, ano passado, por uma metade da metade do preço (numa promoção); e hoje este livro me persegue por todos os sebos pelos quais caminho.

Não sou a pessoa mais ágil em leituras, especialmente porque não consigo ler uma coisa de cada vez; mas eu estava para viajar e encontrar a amiga, e ela não admitia que eu chegasse lá sem ter lido tudo para poder comentar com ela. Acredito que o tenha lido, então, em uma semana. E foi uma das coisas mais gostosas que já li em minha vida.

É claro que por ter lido no ano passado a memória dos fatos não está fresca, e, para piorar, o hábito que tenho de marcar as páginas só foi adquirido muito recentemente. Mesmo assim, tenho cobiçado lê-lo novamente, e enquanto não cedo à vontade (porque tenho uma pilha de outros títulos na fila), acredito que devo tomar a oportunidade de divulgar esse tipo de romance que é, no mínimo, inusitado. Preparem-se, vai ser uma resenha bem grande.

Marion Zimmer Bradley é conhecida por Brumas de Avalon e livros que remontam lendas e outros tipos de ficção fantástica. Em Salto Mortal, todavia, elas no leva ao seu país de origem, Estados Unidos, e abre a tenda de sua escrita nos 40. Tommy Zane é um menino de quatorze anos, filho do domador do Circo Lambeth, que se fascina por uma família de trapezistas chamada Os Santelli Voadores, recém-aderida à grande trupe.

Os Santelli Voadores se compunham por Papa Tony, Angelo e Mario, em ordem etária. Mario é quem percebe e se dispõe ao interesse de Tommy em se tornar um trapezista.
- E ontem à noite o vento estava tão forte, que me vi atrapalhado para controlar as cordas - comentou Mario. Era um rapaz magro e musculoso, de vinte e poucos anos, embora parecesse mais novo. Penteava para trás seu cabelo escuro e encaracolado, deixando à mostra a testa alta, e seus olhos negros, sob sobrancelhas oblíquas, dando-lhe um ar ligeiramente estrangeiro e diabólico.
Era necessário conhecê-lo há muito tempo para perceber que aquelas sobrancelhas faziam seu rosto mentir sobre ele. Muita gente, entretanto, nunca se deu conta disso. 
Com o fim da temporada, os Santelli levam o pequeno iniciante consigo para casa, onde Tommy passa as férias sob às rígidas condições da família, ao mesmo tempo em que é admitido nela. Ele e Mario tornam-se inseparáveis, e isso acaba por suscitar sentimentos que contradiziam à sociedade da época - além de brigas a punho, mas que, com ou sem drama, foram algumas de minhas cenas favoritas entre eles.

Salto Mortal é dividido em dois livros e três partes: O Voador (1944-1947) e Interlúdio (1947-1952), e O Base (1952-1953). Como se vê, existe muito o que contar a respeito dos Santelli, e sobre Mario e Tommy - nosso único ponto de vista, embora a narrativa seja apenas em terceira pessoa, e haja algumas exceções. O livro até nos trás uma árvore genealógica da família, desde os que vieram da Itália até os que foram "adotados" no decorrer das quase novecentas páginas.

Marion, apesar da escrita simples (ao menos na tradução, ainda pretendo buscá-lo no original), conseguiu fazer tantas maravilhas nessa obra que a cada intervalo que eu tinha, e quando terminei de lê-la, sentia-me em um êxtase duradouro. Eu dormia reimaginando as cenas, pensando sobre o futuro dos personagens. Confesso que eu esperava mais da escrita, e tive meus incômodos com detalhes nessa área que não sei se foram da tradução fiel ou se exclusivamente da tradução; mas sou suspeitíssima para opinar, porque gosto de escritas ornamentadas, e sei que isso é o oposto do que a maioria gosta.

Enfim, as abordagens dos livros são várias; mas as principais são o amor de Mario e Tommy, o trapézio e circo. Tive que separar os dois últimos porque nossa autora tem questões específicas a tratar sobre eles.

Me agradou muito o modo como ela escolheu apresentar o romance entre mestre e pupilo, numa época em que o preconceito era crescente. Vocês não encontrarão Salto Mortal em estantes LGBT, porque ele simplesmente não pertence à essa categoria, ainda que toda a história relate e envolva o relacionamento dos trapezistas. Algo que reparei nas estantes LGBT há muito tempo foi uma espécie de separação, uma literatura como que voltada para homossexuais (e afins). O que a Marion quis foi escrever voltada para o público em geral, exatamente como diz um dos comentários na parte posterior do livro:
"Se você aguardava um romance estrelado por personagens gays, numa linguagem que até mesmo sua mãe pode compreender, aqui está." ─ Mandate
Ri bastante quando me deparei com essa citação, mas até o fim do livro, entendi que resume bem o propósito da autora. Marion também sentiu falta de homossexuais que estivessem aos holofotes; também enxergou que apesar da contrariedade a que estão submetidos, eles têm seu papel neste mundo, que é tão meritório de ser escrito e, enfim, trabalhado de todas as formas, como qualquer outro; e que esse papel pode ser tão bonito quanto qualquer outro, desvinculando a imagem da homossexualidade como se fosse apenas "erotismo", ou "imoralidade". Quero dizer que os leitores com as quais ela queria conversar não eram os homossexuais, mas àqueles que desconhecem esse universo que eles mesmos afastam com ignorância e violência (psicológica e física). Mais ainda, lembro-me de discussões nas quais foi questionado nunca termos um homossexual dado pela mídia, as artes, enfim, para servir de exemplo às pessoas - e para isso, o grupo da coletânea de contos A Fantástica Literatura Queer, da Tarja Editorial, propôs: "E se Harry Potter fosse gay?". Harry Potter, como obra e como "pessoa" é de grande inspiração para seus leitores. Essa foi a preocupação de Marion, e foi o que ela construiu, descrevendo em detalhes as personalidades e dando-nos exemplos de suas ações para que não sejamos apenas fãs, mas sejamos instigados a compartilhar das experiências deles.

Falando em ídolos, a autora também apresenta as dificuldades dos atores de cinema da época. Feitos galãs, deveriam zelar por sua fama, e era inadmissível que deixassem pistas de sua sexualidade. Muitos eram obrigados a se casar pelos próprios estúdios. Um dos exemplos mais populares é o dos atores Cary Grant e  Randolph Scott, que embora não assumissem qualquer coisa, deixaram inúmeras fotos dedutíveis de ambos juntos.

Mas o amor dos protagonistas não é o único foco de Marion. A autora transcreveu todo o seu fascínio pelo circo, e não houve detalhe que ela não tenha captado para constituir a obra. A começar pelo foco do trapézio, ela descreve minuciosamente os movimentos, as preparações, possibilidades, perigos. Sabe-se que, além da grande documentação em pesquisa que ela reunia sobre homossexualidade (acredito que desde muito antes de escrever Salto Mortal, mas não me lembro do link onde a vi), também fez uma vasta pesquisa sobre trapézios. O livro, em suma, começa e termina em trapézio, com a evolução dos personagens, até a superação. Esse meio tempo até as conquistas são algumas das partes que mais me deixaram sem fôlego, pois ela soube criar uma expectativa tanto a longo prazo quanto no minuto em que os personagens estão prestes a saltar para as barras, no que quase pude ouvir os tambores. Ademais, ela fala do circo com extrema nostalgia, mostrando a árdua adaptação para os tempos de cinema, e até questionando as maravilhas que as pessoas passavam a perder ao vivo, e que com o tempo os dons desses personagens poderiam ser esquecidos pela extrema possibilidade que as telas dão a tudo - lembrando que o livro foi publicado, acredito, em 1979, ainda mais além da realidade em que os personagens discutiam o assunto.

Falando em fôlegos, sinto que o perdi em muitos momentos. Sentia formigando o estômago, e só sabia devorar as palavras, a cada vez que Mario e Tommy trocavam toques tão delicados às escondidas (uma das cenas do trailer ainda me faz suspirar ♥), e em bons e maus momentos expressavam o que sentiam um pelo outro; a cada vez em que os personagens subiam aos trapézios, seguravam as barras; a cada vez que Mario tentava o salto mortal, aqueles segundos em que ele ficava no ar e que me pareceram uma eternidade. Enfim, nunca um autor havia me apreendido e afligido tanto como nesse livro.

É claro que, como todo livro comprido, houve momentos em que quis pular as páginas. Algumas cenas são cansativas, repetitivas. Estranhamente, as cenas de trapézio são quase que onipresentes, e ainda assim não desgostei de nenhuma, ainda sinto falta delas. Somente o resto cabe nesses aspectos, como alguns dos demorados discursos sobre homossexualidade - algo que me parece desnecessário após o Livro Um. Outros incômodos que tive foi com o modo como ela descartava alguns personagens para propiciar certas coisas, ou propiciar nada; e momentos em que os personagens me pareciam visivelmente forçados pela autora a cometer certas ações, apenas para que alguém (talvez os leitores) pudesse dizer que pelo menos eles fizeram.

Mas a leitura é absolutamente prazerosa. Não há nada que me tenha feito arrepender, e é um livro que me faz sentir uma saudade enorme de lê-lo, de que me lembro com nostalgia, e o qual diversas vezes quero acariciar, cheirar, e abraçar contra o peito. Espero, então, comover outras pessoas com esta resenha exagerada para que possamos todos suspirar juntos com nossos exemplares.

Por Kyran

4 comentários:

  1. As Brumas de Avalon é minha série de livros favorita e nutro muito respeito por Marion Zimmer Bradley. Nunca ouvi falar desse título, aliás, não conheço muitos dos livros da autora e acho que as editoras poderiam trabalhar mais na divulgação de sua obra. Sua resenha despertou muito meu interesse, mas como se trata de um livro tão longo, não é o ideal para mim no momento com tantos livros na fila, mas vou ler no futuro com certeza!

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    1. Fico feliz que minha resenha tenha interessado! Agradeço desde já a preocupação em vir manifestar isso! :3

      De fato, é um livro bem grande, e espero que consiga em breve tempo para lê-lo. De qualquer modo, são páginas que passaram tão depressa enquanto estive imersa na história que até fizeram o livro parecer menor - tanto que lamento que tenha acabado. Espero que quando tiver acesso a ele também goste!

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  2. Vou ler esse livro só por sua causa! (como já fiz com o do Rei Arthur, aliás)
    E como adoro as Brumas, o tema já não é nem um pouquinho do meu agrado, né? Eu vou ter que ler! Fiquei com o nome na cabeça desde que você me falou daquela vez!

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    1. Eu acho que você vai curtir muito, Lô! ♥ Ainda mais as ceninhas deles juntos!

      E uma dica é que esse livro é mais fácil de encontrar em sebos do que em lojas, além de ser metade do preço - já vi na faixa de R$80 a R$90 em sites de lojas, por um exemplar novo.

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