Editora: Rocco
Páginas: 410
“O silêncio de dois minutos”. Esse
é o nome do capítulo que abre Terra
Sagrada, sétimo romance de Rose Tremain, e são esses dois importantes
minutos que regem a grande temática do livro. Em fevereiro de 1952, a pequena
família Ward se reúne, de pé e bem juntinha, na plantação de sua fazenda em
Suffolk – zona rural no interior da Inglaterra – em sinal de respeito pela
morte do rei Jorge VI. Abaixo de seus pais está a diminuta Mary, protagonista,
com 6 anos, pés e mãos pequenos e um rosto redondo que, para sua mãe, lembra um
girassol. Mais abaixo, ciscando, está a galinha d’angola de Mary, Marguerite,
com quem a menina compartilha a estonteante descoberta que fez durante esses
minutos de silêncio: ela não é uma menina, mas um menino.
A partir dessa grande descoberta é que a pequena Mary Ward começa sua longa e difícil trajetória por aquilo que nós costumamos chamar de vida. A verdade é que Mary é sim uma garota, mas não se sente como uma. Mary acredita que nasceu no corpo errado, pois não gosta dos seus seios, que crescem a cada dia, e nem entende os períodos menstruais estranhos que tem que vivenciar a cada mês. Na escola, começa a querer que as pessoas se dirijam a ela como Martin, nome que acredita ser muito mais apropriado para sua natureza masculina, além de começar a entender o que uma paixão boba é capaz de fazer com a alma da gente ao se descobrir nutrindo sentimentos tão ternos pela amiga de sala, Lindsay Stevens.
“Meu nome é Mary Ward, mas eu nunca fui Mary, sempre fui Martin, e gostaria de ser chamada de Martin, por favor.”
Dita assim a história até parece
simples, mas, embora a escrita de Rose Tremain seja norteada pela simplicidade
do modo de viver dos habitantes de Suffolk, a autora nos apresenta um grande
enredo que engloba 30 anos da vida de Martin Ward e a sua maneira singular de
lidar com o que, em nenhum momento do livro, é chamado de homossexualidade. Mary/Martin
encara como algo extremamente natural, humano, e parte para o mundo em busca de
uma maneira de “corrigir” a infelicidade de ter nascido no corpo errado, na
forma de uma cirurgia de mudança de sexo. O livro é dividido em quatro partes
que englobam as três principais décadas da vida de Martin – e também da história
mundial, tratando das décadas de 50, 60 e 70.
Rose Tremain nos apresenta também
outras personagens que têm ou não relação com a história de Martin, conduzindo
os fios da trama por entre as vidas de Sonny e Estelle, pais de Mary, que lutam
para tentar aceitar a vida escolhida
pela filha; também a do sonhador Walter, que nutre um desejo secreto pelo seu
dentista Gilbert, além de algumas outras personagens que têm suas vidas
alteradas por cada período histórico abordado no livro. Creio que a autora foi
corajosa ao escolher tratar de temas que no período de tempo abrangido eram
encarados como práticas inimagináveis, muitos deles ainda não dissolvidos na
sociedade atual.
Acho importante dizer que esse
livro não compõe uma apologia à homossexualidade ou à transexualidade. Ele não
levanta bandeiras e nem defende paradigmas, somente se propõe a contar a
história de indivíduos integrados a essas realidades e suas maneiras de
compreendê-las. Tremain é feliz em abordar tais temas de forma muito natural,
expondo os pensamentos e sentimentos das personagens de maneira genuína e
completamente agregada à mentalidade típica de um pequeno povoado da zona
rural. Ela traz à flor da pele o que eu venho comentando na maioria de minhas
resenhas: o teor existencialista, que pode ser visivelmente reconhecido no
diálogo interior que as personagens mantêm, principalmente Mary e Walter.
Apesar de Rose ser desconhecida
no Brasil, o que lamento, é autora de um best-seller
bastante premiado nos Estados Unidos, Restauração,
que foi levado aos cinemas sob o título de O
outro lado da nobreza, estrelado por atores como Robert Downey Jr e Meg
Ryan. Terra Sagrada talvez seja uma obra
não seja de tão fácil acesso nos dias de hoje, mas, para quem tiver interesse na
leitura dela, aconselho uma boa visita aos sebos de sua cidade, ou à Estante
Virtual, onde, talvez, seja mais fácil encontrá-la.
Por Jeff Pavanin
Por Jeff Pavanin
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